análises e críticas
MEU NOME É BAGDÁ
Por Marina Costin Fuser ¹
Publicado em 27 de outubro de 2021
O filme brasileiro
Meu nome é Bagdá, de
Caru Alves de Souza, mostra a trajetória e os desafios de uma garota de 17 anos apaixonada por skate, que enfrenta assédio, preconceito e machismo ao praticar este esporte tradicionalmente masculino. A produção conquistou o prêmio de Melhor Filme na Mostra Generation do
Festival de Berlim 2020
e acumula 14 premiações internacionais. Em cartaz nos cinemas, o filme estará em canais de streaming em breve.
OS ABALOS SÍSMICOS DAS MULHERES NO SKATE
Ruídos de rodas rolando sobre a superfície lisa. O filme já começa com uma burla, uma jovem andando de skate dentro de uma escola. Aquele ambiente regrado, segmentado em salas de aula, carteiras enfileiradas, horários, campainhas indicando o intervalo e a saída, muros, portões, é esvaziado de pessoas e de sentidos para se tornar uma pista onde a menina desliza sobre rodas como um triunfante ato de rebeldia. “Too cool for school” (“descolada demais para a escola”), diriam os jovens dos anos 1990. E para completar o capricho, ela para e escreve na parede “Foda-se”. Assim é introduzida Bagdá, a protagonista que dá nome ao longa dirigido por Caru Alves Souza, o jovem talento vencedor do Festival de Berlim em 2020.
A abordagem intimista que Caru dá à história de Bagdá não segue os clichês dos típicos clipes de skate que pipocavam nas mídias gringas ao longos dos anos 1990, com punk e hardcore de fundo e meninos usando roupas grunge largas, impressionando as garotas com suas manobras. Com efeito, assim como nesses clipes, a música desenvolve um papel fundamental na trama, e alguns traços semióticos do universo de referências alternativo da cultura do skate deixam suas marcas no filme: calças largas, grafite, as manobras, o asfalto como um pedestal.
Mas a guinada intimista faz a semântica estereotipada do skate escorregar para um mundo singular, que tem nome de cidade. Bagdá é a menina periférica, filha de mãe solteira, irmã do meio de três meninas. É uma menina andrógina, reservada, moleca, ágil, adolescente. Não tem a vaidade da irmã, que gosta de flertar, dançar no meio da pista e beber além dos limites. Não tem a criatividade mirabolante da pequena irmã, que sonha, acredita e investe no contato com seres extraterrestres. Há uma ética do cuidado que cria pontos de contato de Bagdá e os universos das irmãs, onde aquela menina pouco feminina permite que o rosa-choque das paredes possa colorir seu interior. E é esse universo cromático, essa cor invasora, meio alienígena, que sempre esteve lá, que leva Bagdá para a guerra.
Se no mundo íntimo, Bagdá está cercada de mulheres fortes e sonhadoras, é nas pistas que ela se torna trincheira: as pistas de skate e os half-pipes, onde as meninas são minoria.
Bagdá não se intimida com os meninos e suas manobras, mas se irrita com um colega machista que fala das meninas sem respeito. Os colegas embarcam na dele ou, na melhor das hipóteses, furtam-se de rejeitar seus comentários tóxicos. Sua amiga também parece não estar à vontade com certa verborragia machista. A presença dos meninos domina e intimida de forma sutil, invisível, daquilo que é normalizado sem precisar dar nome. Caru Alves reitera o óbvio implícito, sem forçar a barra, a saber: que a presença das meninas nas pistas é sentida como deslocada de seu lugar, como uma presença alienígena.
Mas a invasão alienígena está prestes a acontecer, quando Bagdá e sua amiga encontram outras mulheres de outra região da Freguesia do Ó (bairro da capital paulista), que andam de skate e têm consciência do papel que desempenham sendo mulheres sobre rodas. As ideias vão trocando e amadurecendo, e ganham corpo quando as meninas se juntam para andar de skate. A dinâmica das pistas sofreu abalos sísmicos com a presença marcante das mulheres, entre as rodas dos skates e as rodas das ideias.
O clímax se dá numa festa, não num grande evento na vida dos adolescentes do bairro. É só mais uma festa, com luzes de neon e reflexos coloridos espalhados que passeiam pelo inferninho onde os corpos flutuam, tornam-se música, num ato catártico de entrega.
Como previsto, a irmã de Bagdá se abandona aos excessos, precisando de cuidados. Na saída da pista, o colega com postura machista pede um beijo a Bagdá, que de início entra na brincadeira, mas logo se retrai: ela não está interessada. Depois de Bagdá verbalizar seu não, o colega parece não se dar por satisfeito e tenta agarrá-la à força, num gesto bruto que parece ensaiar um clima de estupro. Mas o ato é interrompido pela irmã embriagada, que o empurra bruscamente e retribui os cuidados da irmã. A solidariedade entre as duas sela o desfecho da festa, mas a conversa não para por aí. É na pista que se dá o acerto de contas, com as mulheres fechando o cerco para cima do agressor, dando exemplo aos meninos.
O pequeno ato revolucionário que Caru leva à tela com a sutileza despretensiosa de uma história singular é o que dá o tom da política capilar da trama: a revolução não se faz só com as tomadas das bastilhas, mas com os pequenos gestos que se traduzem num reequilíbrio entre as forças e as vozes que ocupam os pequenos espaços.
VIDA DE MENINA
A história de Bagdá é uma história relativamente simples. Os apuros que a acometem não são diferentes dos apuros que atravessam o dia a dia de outras meninas de sua idade. O fato de o estupro não se concretizar também deixa uma fissura para se pensar em outras situações regidas pela mesma lógica, cujos efeitos não são sentidos apenas se o ato chegar às vias de fato. A violência é tudo o que acontece depois que Bagdá diz não.
O que leva meninos e homens a fazer pouco caso do desejo da outra pessoa? Como é possível a entrega sem que o desejo seja mútuo?
Bagdá se impõe enquanto mulher, no skate e em seu círculo social, e o faz educando os meninos, mudando a cultura da cena da qual faz parte. As meninas se ajudam, se fortalecem umas nas outras: elas podem mais juntas. A trilha que começa suave vai acompanhando esse fluxo das ideias das skatistas, vai adquirindo um ritmo mais rápido, dinâmico e pulsante, combinando música árabe,
hip-hop, até chegar no
funk
e no
punk-rock, com a prevalência de vocais femininas.
A metanarrativa é um dos pontos mais sensíveis da trama, posto que Bagdá leva uma câmera para a pista, e gosta de filmar os seus colegas. A metanarrativa reposiciona a personagem retendo o olhar dos colegas na contracena, podendo controlar a narrativa pelo seu olho demiúrgico, fazendo girar sua pequena roda. Que história está sendo contada? Talvez a vida mesma...
A batida policial denuncia a vigilância hostil que enquadra a vida dos jovens periféricos como bandidos a priori, sem precisar ser ligados a algum crime para levantar suspeitas. Ao chegar a vez de Bagdá vemos o sexismo e a heteronormatividade ultrajantes dos guardas, que não sabem o que fazer com a androginia da personagem: um misto de ignorância e truculência que faz o sangue ferver, e que está fadado a se repetir como uma órbita que atravessa tantas vezes a vida desses jovens periféricos.
O filme trata de mulheres fortes: a mãe solteira que vai à luta para garantir uma vida decente às suas filhas; a tia barista que encara e bota para correr qualquer machão embriagado que se atrever a bancar o engraçadinho em seu bar; a obstinada irmãzinha, que grava um filme para a NASA a fim de batalhar por seus sonhos; e a revolução sobre rodas de Bagdá.
Com uma história simples e delicada, o filme de Caru Alves Souza empodera cada mulher que o assiste, nos dá razões para acreditar que sim, nós podemos ter agência, mudar o mundo, através de experiências singulares. Quando assistimos àquela pequena fada sobre rodas ganhando uma medalha Olímpica alguns anos depois, sinto as vibrações de Bagdá dizendo: sim, isso é possível.
A diretora
Caru Alves de Souza
e a atriz Grace Orsato
no Festival de Berlim 2020
Entre 14 premiações internacionais, o filme recebeu o prêmio de Melhor Longa Metragem de Skateboard no Paris Surf & Skateboard Film Festival. Na foto, a diretora Caru Alves
AS MULHERES E O SKATE
O skate foi inventado em meados de 1960 por surfistas californianos que decidiram colocar rodas numa pequena prancha, adaptando uma modalidade de “surfe sobre rodas”, popularmente conhecida como sidewalk surfing (surfe de calçada). Assim seria possível surfar mesmo longe do mar, reproduzindo movimentos adaptados do mundo do surfe para o asfalto. Não tardou até que a brincadeira passou a ser capitalizada, com o brinquedinho sendo fabricado e comercializado em larga escala, atraindo um público jovem interessado em esportes radicais.
Em sua tese de doutorado em Antropologia Social pela USP, o professor Giancarlo Marques Carraro Machado analisa a cultura e o hiato de gênero na história da modalidade. Segundo o autor, o skate teve seu universo construído com códigos, símbolos e experiências próprias que permitiram investimentos na mídia especializada, na organização de eventos, na criação de confederações, na fabricação de produtos etc. "Aos poucos foram delineadas distintas funções em meio à dinâmica responsável por transformar aquilo que antes era apenas uma brincadeira em um esporte.”
Embora seja uma cultura espacialmente subversiva, que se apropria do espaço da rua de forma bastante ousada, disruptiva quanto às atividades econômicas e a circulação de pessoas no espaço urbano, Machado aponta que o esporte é socialmente atribuído ao universo masculino. Com efeito, uma pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha, divulgada em 2010, registrou que, dos cerca de 3,8 milhões de praticantes do skate no Brasil, apenas 10% eram mulheres.
Uma das justificativas, prossegue o pesquisador, é o fato de o skate, concomitante a outros esportes, ser visto pelo senso comum como "perigoso", por envolver riscos físicos e exigir demasiado esforço e resistência — características que comumente não são associadas às mulheres.
Assim, os signos e discursos visuais relacionados ao universo do skate foram construídos de forma a apagar as mulheres, o que é bastante emblemático nas revistas especializadas do esporte. O autor examinou centenas de edições brasileiras de revistas de skate com diferentes títulos, e foram raras as capas em que figuravam mulheres praticantes do esporte. Nessas ocasiões, os holofotes não estavam voltados para as manobras das atletas, mas sim, numa semiose de sensualidade, pautavam-se em atributos físicos.
Nas principais revistas em circulação no país, cada uma reservava apenas pequenos espaços ao skate feminino. “As relações de poder sempre estiveram expressas na prática do skate. Nas pistas, por exemplo, os obstáculos centrais são ocupados pelos homens, ao passo que as mulheres geralmente ficam às suas margens. Em campeonatos, na maioria dos casos, a premiação é desigual, com prêmios destinados às mulheres bem inferiores àqueles recebidos pelos homens.”
Para outra pesquisadora da área, a professora Dani Abulhawa, doutora da Universidade de Sheffield Hallam no Reino Unido e autora de Skateboarding and Feminity: gender, space-making and expressive mouvement (2020), o skate parece estar atrelado ao que o professor norte-americano Becky Beal descreve como uma "masculinidade alternativa". Ou seja, a cultura do skate rejeita as formas tradicionais e hegemônicas de masculinidade e está menos ligada à força bruta como modelo de virilidade. Em certo sentido, o skate é vendido como uma atividade progressista e afirmativa.
Mas a autora ressalta que, por trás do liberalismo e da permissividade do skate, paradoxalmente está um sexismo inerente, de cunho heteromasculino como afirmação desta cultura. Abulhawa destaca que as mulheres ocupam uma posição limítrofe na cultura do Skate. E por ocuparem o domínio do skatista masculino, encontram-se inevitavelmente dentro de contextos sociais que objetificam as mulheres. "A representação de mulheres como objetos sexuais, ou em situações em que são maltratadas, ‘vende bem’ porque reafirma a heterossexualidade do participante, no que é uma arena de atuação fortemente masculina — e ostensivamente heteronormativa”, destaca.
Por outro lado, a autora considera que o envolvimento das mulheres na prática do skate tem um forte caráter subversivo, na medida em que elas deixam a marca indelével de seu protagonismo, que funciona como um texto, que reposiciona o esporte em chave feminina: "A estratificação de gênero passou a ser aceita dentro da cultura, com equipes e competições de skate apenas femininas garantindo esta separação na categoria de skate feminino".
SKATE FEMININO BRASILEIRO
A recente vitória de Rayssa Leal nas Olimpíadas de Tóquio no Japão, levando uma medalha de prata para casa com apenas 13 anos, teve um grande impacto sobre a cultura do skate no Brasil. Ao seu lado estavam as atletas Letícia Bufoni e Pâmela Rosa. Mas para Vitória Mendonça, campeã do Campeonato Brasileiro de Skate Feminino em 2017 e que, no ano seguinte, integrou a Seleção Brasileira de Street Feminino, o skate ainda é um desafio para as mulheres. Outra pesquisa do Datafolha, encomendada pela Confederação Brasileira de Skate em 2019, portanto nove anos depois da pesquisa previamente citada, o skate feminino deu um salto, com o aumento de 75% de mulheres skatistas, o que corresponde a 2,2 milhões de esportistas.
Dentre as mulheres ativas na cena contemporânea do skate, destacam-se: Dora Varella, Isadora Pacheco, Yndiara Asp, Victória Bassi e Letícia Gonçalves na modalidade Pak. Na Street figuram Pâmela Rosa, Rayssa Leal, Letícia Bufoni, Gabriela Mazetto, Virgínia Fortes Águas e Isabelly Ávila.
Após viralizar com um vídeo em que a menina de sete anos andava de skate fantasiada de fadinha, Jhulia Rayssa Mendes Leal, oriunda de Imperatriz do Maranhão, foi a primeira medalhista olímpica com apenas 13 anos e também foi consagrada com o prêmio internacional “Valores Olímpicos”. O impacto que Rayssa provoca em meninas que andam de skate é sem precedentes.
O filme Meu Nome é Bagdá é um encontro certeiro com essa nova geração de mulheres skatistas que ganharam a cena no Brasil e colocaram o país no mapa do skate mundial. A pequena revolução feminista que Caru Alves leva para a tela acontece também fora dela, o que torna o filme ainda mais potente, provocando abalos sísmicos no entendimento sobre qual seria o lugar das mulheres no skate.
Referências
ABULHAWA, Dani (2008) "Female skateboarding : re-writing gender". In: Platform: Postgraduate e Journal of Theatre and Performing Arts, 3 (1), 56-72.
BEAL Becky. (1996) “Alternative Masculinity and It’s Effects on Gender Relations in the Subculture of Skateboarding” - Journal of Sport Behaviour. 19. 3 (1996): 204-220
FIGUEIRA, Márcia Luiza Machado; GOELLNER, Silvana Vilodre (2009). “Skate e mulheres no Brasil: fragmentos de um esporte em construção”. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas. Vol.30, n.03, p.95-110.
MACHADO, Giancarlo Marques Carraro (2013) “As mulheres e o ‘carrinho’: gênero e corporalidade entre as skatistas”. In: Anais de ‘Fazendo Gênero 10: Desafios Atuais dos Feminismos”, disponível neste link
Artigos jornalísticos
‘Datafolha aponta 3,8 milhões de skatistas no Brasil’, 28/04/2010, disponível neste link
Mulheres Conquistam Espaço no Skate Viram Esperança de Medalha em Tóquio, O Globo, 7/06/2021.Disponível neste link
Pesquisa DataFolha 2015. Disponível neste link
Rayssa Leal: a história da Fadinha do Skate. Disponível
neste link
ASSISTA NOS CINEMAS
MEU NOME É BAGDÁ
Título original: Meu Nome é Bagdá
Categoria: Drama
Lançamento: 2020, Brasil, 1h36min
Indicação 14 anos
Sinopse: Bagdá (Grace Orsato) é uma jovem skatista de 16 anos que passa os dias ao lado dos amigos, fazendo manobras na pista local, fumando maconha e jogando baralho. Aos poucos ela se aproxima de Vanessa (Nick Batista), estimulada a participar do grupo. Juntas, elas conhecem outras meninas skatistas e estreitam laços de amizade.
Direção: Caru Alves de Souza